Individualismo é uma palavra que provoca polêmicas e mal-entendidos.
Penso que, quando isso acontece, é porque o termo está sendo usado com
múltiplos significados, o que desencadeará emoções diferentes de acordo
com o modo como cada um a entenda.
Individualismo é palavra que determina juízo negativo quando é usada
como sinônimo de egoísmo. O mesmo acontece quando ela é usada para
descrever uma pessoa incompetente para relacionamentos afetivos e para
uma adequada integração em grupos de convívio.
Vale a pena uma reflexão mais rigorosa a respeito do
tema, especialmente porque temos vivido uma fase da nossa história na
qual cresce a tendência na direção do individualismo.
O individualismo tem crescido basicamente em função dos avanços
tecnológicos que nos levam a passar cada vez mais tempo em atividades
solitárias, tais como o uso do computador, de 'mp3 player', de jogos
eletrônicos etc.; isso desde os primeiros anos de vida.
É fato também que a disponibilidade da maioria das mães diminuiu porque
elas hoje também trabalham fora de casa. Além disso, é cada vez mais
difícil para as crianças conviverem com outras da mesma idade de forma
espontânea, já que as ruas não são mais o 'playground' que eram.
Podemos definir o individualismo como a capacidade de exercer a própria
individualidade. É curioso porque a palavra individualidade tem
conotação positiva, como a conquista de um estado de autonomia.
Nascemos totalmente sem identidade e em estado de fusão com nossas mães.
Levamos mais de 20 anos para completar o processo de desenvolvimento
interior que definirá nossa individualidade.
Ela é, talvez, uma das nossas maiores conquistas: conseguimos finalmente
nos reconhecer como um ser autônomo, com pensamento próprio e pontos de
vista construídos a partir de nossas próprias vivências - é claro que
influenciado por tudo o que nos cerca.
A individualidade nos faz consciente de nossa condição de solitários, de
que todos os contatos que estabelecemos com “os outros” é um tanto
precário, que nem sempre somos tão bem entendidos como gostaríamos, isso
porque o modo de pensar de cada cérebro é único e a comunicação nem
sempre se estabelece.
Por anos lutamos contra a sensação de solidão determinada pela
constituição da nossa individualidade. Creio que nós, como espécie,
ainda lutamos contra essa condição e só estamos nos aproximando dela em
virtude dos avanços tecnológicos que estão nos “forçando” a dar
continuidade ao processo de emancipação que sempre tendemos a
interromper.
Os processos contrários à individualidade fazem parte do fenômeno
amoroso, da tendência que temos de nos aconchegar inicialmente em nossas
mães e depois em seus substitutos adultos - relacionamentos amorosos,
patriotismo etc.
Ao nos colocarmos como defensores do amor e das tendências gregárias que
dele resultam, nos posicionamos, nem sempre de modo consciente, contra o
desenvolvimento da nossa individualidade. Passamos a considerá-la como
nociva ao bem comum, como algo que nos impediria de pensar também no
próximo.
Para preservar o termo “individualidade”, altera-se o foco das críticas
para outra palavra com significado semelhante. Aqueles que são
favoráveis às causas coletivas se colocam contra o individualismo - que
significa apenas o exercício da individualidade, algo que eles mesmos
consideram positivo.
Compreendo a aflição das pessoas diante de um ponto de vista novo e
aparentemente contraditório com o que se habituaram; ou seja, de que o
individualismo implica em egoísmo e descaso pelo outro.
Do meu ponto de vista, porém, não vejo nenhuma contradição entre o
exercício pleno da nossa individualidade e o desenvolvimento do sentido
moral e de solidariedade social. Ao contrário, tenho observado que o
incompleto desenvolvimento emocional das pessoas - o que, na prática,
implica no não atingimento do estágio individualista - acaba por
provocar condutas moralmente duvidosas.
Assim sendo, não só não creio que o individualismo não é sinônimo e nem
implica em egoísmo como é forte a convicção que tenho na direção oposta:
o egoísmo deriva da imaturidade emocional que se caracteriza pelo
incompleto desenvolvimento da individualidade.
O egoísta não pode ser individualista porque ele tem que ser favorável à
vida em grupo já que não tem competência para gerar tudo aquilo que
necessita. É do grupo - ou de algumas pessoas pertencentes ao grupo -
que irá extrair benefícios.
O egoísta é aquele que precisa receber mais do que é capaz de dar. É
um fraco e não um esperto. Ou melhor, é esperto porque é fraco e precisa
usar a inteligência para ludibriar outras pessoas e delas obter o que
necessita e não é capaz de gerar. O egoísta tem que ser simpático e
extrovertido. Não é assim porque gosta das pessoas e de estar com elas. É
assim porque precisa delas e tem que seduzi-las com o intuito de
extrair delas aquilo que necessita.
Uma outra forma de imaturidade emocional, menos dramática que o egoísmo, é a generosidade.
O generoso precisa se sentir amado e benquisto. Para atingir esse
objetivo faz qualquer tipo de concessão. O egoísta percebe isso - é
esperto e atento a todas as oportunidades de se beneficiar - e trata de
obter os favores práticos que o generoso está disposto a prestar com o
intuito de se sentir aconchegado.
Compõe-se uma aliança sólida e nociva entre esses dois tipos de pessoas
imaturas e dependentes: o egoísta depende para aspectos práticos da
sobrevivência e o generoso depende para aspectos emocionais de aconchego
e de não se sentir sozinho.
Esse tipo de aliança define um tipo comum de elo amoroso que E. Fromm
chamava de sadomasoquista: o sádico é o egoísta e o masoquista o
generoso. Existe uma interdependência na qual o mais poderoso - porque o
menos imaturo - é o generoso ou o masoquista. Sim, porque até mesmo no
sadomasoquismo sexual quem dá as cartas é o masoquista!
Há 40 anos venho tentando desvendar e desfazer essa trama, a meu ver
muito duvidosa, que se estabelece entre os “bons” - generosos - e os
“maus” - egoístas. Há mais de quatro décadas luto contra essa dualidade
que não tem nos levado a parte alguma e que se transmite, através do
exemplo, de geração em geração.
Há décadas tento ver o que existe para além do bem e do mal. Tenho
buscado com tenacidade e persistência um modo de ser que seja
verdadeiramente moral e não esse padrão que dá virtude à generosidade e
que implica obrigatoriamente na existência de igual número de egoístas. A
generosidade não é virtude porque ela se exerce perpetuando o modo de
ser egoísta daquele que é seu beneficiário.
Considero importante distinguir generosidade de altruísmo: esse último
corresponde a ajuda anônima a terceiros desconhecidos ou pouco
conhecidos, de modo que não implica no reforço do egoísmo, já que não
existe trocas íntimas.
Egoísmo e generosidade interagem e se reforçam de modo negativo nas
relações íntimas entre casais, entre pais e filhos, entre sócios e na
sociedade como um todo.
Há décadas venho afirmando que o egoísmo só irá desaparecer quando desaparecer a generosidade. Ou seja,
o parasita só desaparecerá quando não houver mais hospedeiro a ser parasitado. Assim sendo, todo aquele que defender a generosidade como virtude estará indiretamente defendendo a existência de egoístas!
A superação da dualidade egoísmo-generosidade corresponde ao modo de ser
que chamo de justo: aquele no qual não se recebe mais do que se dá, mas
também não se dá mais do que recebe.
O justo terá que ser um indivíduo independente, tanto do ponto de
vista prático como emocional. Não poderá necessitar de ninguém para as
questões práticas da sobrevivência, como é o caso do egoísta. Não poderá
necessitar de ninguém do ponto de vista do aconchego emocional, como é o
caso do generoso. Isso não significa que não deseje estabelecer elos
nos quais hajam trocas de todos os tipos. Trocas justas.
Não se deve desprezar também a diferença entre necessidade e desejo. No
caso do desejo, o que está em jogo é o prazer e não a necessidade, de
modo que tendemos a ser muito mais cuidadosos na “contabilidade” que
envolve as trocas com os que nos cercam.
Pessoas maduras emocionalmente gostam de se relacionar social e
afetivamente. Por não precisarem vitalmente das outras pessoas não são
obrigadas a estar com elas o tempo todo, como costuma acontecer com os
egoístas, mais imaturos e dependentes.
Pessoas mais maduras gostam também de ficar consigo mesmas, com seus
pensamentos, seus sonhos, suas músicas, seus livros, etc. Pessoas mais
maduras são aquelas que desenvolveram mais firmemente sua
individualidade e chegaram a um modo de ser que lhes agrada; assim,
conviver consigo mesmas também é um bom programa!
Pessoas mais maduras são, pois, individualistas, aquelas que exercitam com prazer suas individualidades.
Costumam preferir um convívio social mais restrito, de modo que são mais
exigentes na escolha dos seus amigos e conhecidos. Outras não se sentem
muito gratificadas com as interações humanas e pode muito bem ser que
prefiram uma vida mais solitária. Especialmente aquelas que já se
conciliaram com essa peculiaridade da nossa condição.
Sim, porque é provável que uma das razões pelas quais temos demorado
tanto para atingir esse estágio que pode ser chamado de nascimento
emocional deriva da nossa dificuldade de aceitar a condição de seres
únicos e sozinhos.
Nascemos fisicamente no momento do parto e só depois de vários meses
conseguimos nos reconhecer como separados de nossas mães, o que
corresponde ao nascimento psicológico.
Parece que precisamos mais de 20 anos para que aconteça o nascimento
emocional, isso para aqueles poucos que conseguem chegar até aí!
Reafirmo minha convicção que o individualismo corresponde ao atingimento
da maturidade emocional, condição indispensável para o estabelecimento
de relações afetivas de qualidade e também o surgimento de um efetivo
avanço moral entre nós.
Essa é a boa notícia que deriva das dramáticas e nem sempre adequadas
mudanças que temos acompanhado nos últimos 50 anos. Espero que tenhamos
tempo para vê-la florescer, o que só acontecerá se o mundo não acabar
justamente em mais uma guerra entre o “bem” e o “mal”!
Flávio Gikovate
Meus amigos(as) a todos uma otima Tarde de muita Paz
Força Sempre
Abraços
Claudio Pacheco